O governo divulgou no
início de fevereiro vitórias importantes contra a miséria e prometeu que a
partir do mês que vem não existirá mais pobreza extrema no Brasil. Isso quer
dizer que não haverá ninguém, já agora em março, com renda inferior a 70 reais
por mês em todo o território nacional.
Segundo os critérios
oficiais em vigor, geralmente avalizados por organismos internacionais, essa
quantia é a marca que define quem é quem na escala social brasileira. O cidadão
que tem uma renda mensal de 70 reais, ou menos, é um miserável oficial; quem
consegue passar esse limite já não é mais.
"Tiramos, entre 2011
e 2012, mais de 19,5 milhões de pessoas da pobreza extrema”, afirmou a
presidente Dilma Rousseff. “Até o mês de março vamos zerar o cadastro”. Segundo o governo, há
no momento 600.000 famílias nesse registro; não haverá mais ninguém dentro de
um mês, salvo um número incerto de cidadãos que estão na miséria, mas não no
cadastro.
Esses ainda terão de
ser encontrados para receber do Tesouro Nacional, a cada mês, os reais que vão
salvá-los.
Pode haver erros
nessas contas, é claro, mas não se trata de números argentinos: basicamente,
retratam a realidade aproximada da fossa social brasileira.
A dimensão numérica,
portanto, está certa. O problema é que ela também está errada ─ pois leva o
governo a concluir que a miséria está acabando no Brasil, quando é mais do que
óbvio que ela continua existindo, e existindo à toda.
A primeira dificuldade
com a postura oficial está na pessoa verbal utilizada pela presidente.
“Tiramos” da miséria, disse ela ─ uma apropriação indébita da realidade, pois
quem tirou aqueles milhões de brasileiros da linha inferior aos 70 reais não
foi ela nem seu governo, e sim o contribuinte brasileiro.
Foi ele, e só ele,
quem sacou o dinheiro de seu bolso, através dos impostos que paga até para
comprar um palito de fósforo, e o entregou às coletorias fiscais; se não fosse
assim, não haveria um único tostão a distribuir para pobre nenhum.
Trata-se de um vício
incurável nos circuitos neurológicos dos governantes brasileiros. Acreditam na
existência de uma coisa que não existe: “dinheiro do governo”. É como acreditar
em disco voador. A diferença é que tiram proveito de sua crença; é o que lhes
permite dizer “eu fiz” tantas escolas, tantos quilômetros de estrada e por aí
afora, como se o dinheiro gasto em tudo isso tivesse saído de sua própria conta
no banco.
O problema essencial,
porém, está na lógica. Como nos ensina Mark Twain, que elevou o bom senso à
categoria de arte em quase tudo o que escreveu, existem três tipos de mentira:
a mentira, a desgraçada da mentira e as estatísticas. Esse anúncio do fim da
pobreza extrema é um clássico do gênero.
A estatística precisa,
obrigatoriamente, de um número fixo para definir qualquer coisa que pretende
medir, assim como um metro precisa ter 100 centímetros. No caso, o número
escolhido, e aceito por organizações imparciais mundo afora, foi 70 reais ─ mas
não faz absolutamente nenhum nexo afirmar que uma pessoa que ganhe 71 reais por
mês, ou 100, ou 150, tenha saído da miséria.
O resumo dessa ópera
é claro. Daqui a alguns dias, não haverá mais miseráveis nas estatísticas do
Brasil; só haverá miseráveis na vida real.
Além disso, seremos
provavelmente o único país do mundo em que a miséria teve uma data certa para
desaparecer. O governo poderá dizer: “O Brasil acabou com a miséria no dia 15
de março de 2013, às 18 horas, ao fim do expediente na administração federal”.
Praticamente nenhum
cidadão brasileiro, ao sair todo dia de casa, leva mais do que 15 minutos para
dar de cara com alguma prova física de miséria. Mas, do mês de março em diante,
terá de achar que não viu nada. Se procurar alguma autoridade para relatar o fato,
ouvirá o seguinte: “O senhor deve estar enganado. Não há mais nenhum miserável
no Brasil”.
É assim, no fim das
contas, que funciona o sistema cerebral do governo. A realidade não é o que se
vê. É o que está no cadastro.
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