“Marlon se garante, não se preocupem” – foi o que ouvimos a nossa guia dizer ao sairmos da Casa Pueblo, em Punta Ballena, no Uruguai, e prepararmo-nos para ir embora. Tais palavras não precisariam ser ditas, caso Marlon, o nosso motorista, fizesse o que todos os outros motoristas fizeram com seus respectivos ônibus, ou seja, dar uma ré até onde havia espaço suficiente para manobrar um ônibus gigantesco e retornar para a estrada no sentido inverso. O problema é que Marlon não agiu como os outros. A fim de causar-nos um pouco de “adrelina”, avançou cada vez mais pelo promontório onde havia espaço para somente um veículo de cada vez. No final deste havia uma curva fechadíssima, onde ficava evidente que ele não conseguiria efetuá-la de uma vez só. Seria preciso várias manobras, na beira do penhasco, para fazer com que o ônibus se endireitasse de vez.
Os passageiros, em sua maioria pessoas de idade, ficaram apreensivos e alguns até pensaram em descer do ônibus e esperar na estrada, sãos e salvos de uma possível queda livre pelo penhasco. Confesso que até eu pensei em descer, mas ao ouvir as palavras da nossa guia –“Marlon se garante” -, relaxei. E a tensão deu lugar a uma estranha segurança. Se ele se garante, então nada devo temer – foi o que pensei. Mas isso não me impediu de sentir um frio na barriga cada vez que o ônibus ficava perto demais do que seria uma queda pelos rochedos. Finalmente, conseguimos retornar com segurança e Marlon teve os merecidos aplausos pelo profissionalismo e coragem.
Por mais que eu saiba que sentir insegurança em determinados momentos faz parte da natureza humana, admiro essa fé que muitas pessoas têm em si mesmas. Uma pessoa insegura não realiza nem metade do que uma que seja segura de si realiza ao longo do caminho, seja em qualquer âmbito da existência. Pessoas seguras ousam mais, amam mais e vão em frente sem premeditar maus resultados, pois sabem que dificilmente irão errar. Até podem errar, mas como saberão se não tentarem?
Sentir medo é normal, mas ter controle sobre esse medo é prerrogativa de heróis. Leio todos os dias noticias sobre tragédias, pilantragens por parte de servidores públicos, má fé por parte de certos legisladores que desviam dinheiro do erário público para suas cuecas, atitudes desumanas de cidadãos desequilibrados que jogam carros por cima de ciclistas ou de transeuntes, mas raramente leio sobre ações de pessoas que esqueceram o próprio medo para ajudar os outros ou para vencer na vida. Além da generosidade e do amor ao próximo, também a coragem distingue uma alma nobre de uma perversa. Só que “almas nobres” não vendem jornais tanto quanto a miséria moral e material venderia. O que acusa um bom desempenho na contabilidade midiática é o que a natureza humana tem de mais sórdido, os escândalos, os crimes, as aberrações.
Quando criança, em 1977, emocionou-me o exemplo do Sargento Silvio Hollembach, herói que morreu ao salvar um menino de treze anos de um poço de ariranhas, em Brasília. Naquela época, onde a imprensa não possuía tanta liberdade devido à ditadura imposta pelos militares e existiam “censores” que peneiravam as notícias antes delas chegarem à população em geral, não era desabado sobre leitores e telespectadores tanto excesso de violência e de mau gosto. Tínhamos acesso somente ao que poderia servir de bons exemplos de moral e civismo. Não estou defendendo a ditadura ou sendo contra a liberdade de imprensa; apenas acho que grandezas humanas também dão boas matérias aos profissionais da mídia e deveriam ser mais exploradas.
Hoje nossos jovens assistem a filmes como “Bruna Surfistinha”, que nem sequer pode ser considerada anti-heroína. Se ela tivesse aproveitado a grande oportunidade que teve na vida, se tivesse sido corajosa, se tivesse tido fé na própria capacidade, seria tão heroína quanto aquela mãe que deixa seus filhos todos os dias numa creche e vai trabalhar em dois empregos para poder sustentá-los de forma digna, ou como a jovem que sai da pobreza do interior e vem à cidade para estudar, formar-se, matar-se estudando para passar em concurso público e crescer por seus próprios méritos.
Nossos jovens assistem, também, a filmes como “Meu Nome não é Johnny”, que conta a trajetória de um jovem de classe média alta do Rio de Janeiro. Mesmo sendo adorado por seus pais, aventurou-se no mundo do tráfico e, mesmo sendo investigado e preso, tornou-se quase um rei. Assim como a “surfistinha”, sua história também mereceu ser transformada em livro e, posteriormente, em filme brasileiro, no qual foi retratado com muita simpatia. Também nem para anti-herói ele serve. Seria um herói caso tivesse seguido o exemplo do jurista Joaquim Barbosa, primeiro afrodescendente a ser ministro do STF. Um dos oito filhos de um pedreiro e de uma dona de casa, aos 16 anos já era arrimo da família, arranjou emprego, estudou e escalou os mais altos degraus da vida.
Será que a vida de um homem afrodescendente que resistiu a condições adversas - que estudou quando o esperado era abandonar-se ao meio onde vivia; que não cedeu às tentações da droga e do crime; que alcançou o sucesso através de muito estudo e dedicação; que teve a coragem e a ousadia de anular um destino que traçava um fracasso anunciado - daria um bom filme que pudesse servir de exemplo aos jovens a ponto de ser exibido até em salas de aula?
Os heróis com os quais costumava sonhar antigamente estão cada dia mais longe dos meus olhos e ouvidos. Consola-me o fato de saber que ainda existem heróis anônimos por aí, que me comoverão cada vez que eu ler notícias sobre a libertação de algum jovem sequestrado, de pessoas sendo resgatadas de rios transbordantes, de vítimas sendo desenterradas ainda vivas de escombros ou de paramédicos tentando vencer o tempo. Essas pessoas não têm direito a livro biográfico, não virarão manchetes em jornais e nem terão seus nomes inscritos na calçada da fama como tantos “johnnys” e “surfistinhas”, mas jamais poderão ser consideradas covardes, medrosas ou omissas nem com os outros e nem consigo mesmas.
Maus exemplos duram apenas o tempo em que a fama permitir e serão usados como instrumentos de marketing, mas um instantâneo que seja de grandeza moral perdura na alma a vida inteira. Eu tinha apenas 13 anos quando me emocionei com o ato de heroísmo do Sargento Silvio Hollembach, e ele até hoje não sai dos meus pensamentos.
Meus heróis e heroínas serão sempre aqueles que conseguiram ultrapassar o ponto pelo qual não passa a coragem humana, que deram sentido e dignidade ao ato de viver, que são de carne, sangue e alma, e que, apesar dos tempos terem mudado, ainda servem de exemplos a serem copiados.
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