sexta-feira, 4 de março de 2011

Jacques Lacan e o Cisne Negro


Assisti ao filme Cisne Negro e não considerei um drama. Para mim, trata-se de um suspense psicológico, e somente pessoas que conhecem um pouco do mecanismo da fantasia que toma conta de um neurótico e sua realidade psíquica poderão entender o enredo e o problema da personagem, Nina, magnificamente interpretada pela atriz Natalie Portman.
É um filme que Jacques Lacan teria aplaudido de pé, caso ainda vivesse (até eu senti vontade de fazer isso), pois é lacanismo puro do início ao fim. Penso até que a personagem Nina foi criada com base no “Caso Aimeé”.
Na história do movimento psicanalítico, chama-se lacanismo a uma corrente representada pelos diversos partidários de Jacques Lacan, sejam quais forem suas tendências.
Jacques Lacan foi um psicanalista francês (13/04/1901 – 09/09/1981), que exerceu grande influência sobre a psicanálise francesa dos anos 70 como intérprete da obra de Sigmund Freud. É dele o famoso contraste ao Cogito de Descartes: “Penso onde não sou; logo sou onde não penso”.
Nasceu na cidade de Paris, de uma família burguesa e católica. Formou-se em Medicina e especializou-se em Psiquiatria com a tese de doutorado A Psicose Paranoica em Suas Relações com a Personalidade (1932), sobre um caso de paranoia feminina, o qual intitulou de “Caso Aimeé”.
O “Caso Aimeé” é a história de uma funcionária dos Correios, Marguerite Anzieu, que é presa e logo internada no hospital Saint Anne após atacar uma importante atriz da época, Huguette Duflos, em 1931. Marguerite fracassa no ataque, ferindo apenas a mão da atriz, mas foi o suficiente para que seu caso interessasse ao jovem psiquiatra Lacan.

No estudo do caso, Lacan cria um novo conceito diagnóstico, o de “Paranoia de Autopunição”, a partir do fato de sua paciente ter se curado após o ato de agressão contra Huguette, e mostra que, na verdade, ao atacar a atriz, Aimeé estava atacando a si mesma, ao seu ideal de “Eu”. A tese marcou a passagem da Psiquiatria à Psicanálise.
Lacan mostrou que o inconsciente se estrutura como a linguagem. A verdade sempre teve a mesma estrutura de uma ficção, em que aquilo que aparece sob a forma de sonho ou devaneio é, por vezes, a verdade oculta sobre cuja repressão está a realidade social. Considerava que o desejo de um sonho não é desculpar o sonhador, mas o grande “Outro” do sonhador. O desejo é o desejo do “Outro”, e a realidade é apenas para aqueles que não podem suportar o sonho.
No caso da personagem Nina, a fantasia é construída e vivida na tentativa de mediar o encontro com o real. Esse real inominável da questão da mãe “devoradora” – Para Lacan há o desejo, literal, da mãe de possuir (comer, canibalizar) o seu filho como se fosse parte do seu corpo. Este desejo natural coloca o filho em uma situação de escolha definitiva: ou se torna independente pela falta da mãe se transferir para o filho - e se torna um “sujeito faltante”, ou é engolido pela “boca de jacaré” da mãe e se torna um “autista” ou um doente mental, fragmentado sem unidade, dependente da mãe. Quando a criança se torna uma psicótica, a figura materna não a reconheceu como ser humano e não aconteceu a alienação com separação.
No filme, Nina é reprimida e infantilizada por uma mãe frustrada que, ao mesmo tempo em que a motiva a crescer profissionalmente, trata-a como a “garota doce”, uma criança que dorme em um quarto em tons de rosa, abarrotado de bichos de pelúcia, sendo ninada todo o dia por uma caixinha de música onde gira uma perfeita e enrijecida bailarina de porcelana, imagem da própria Nina.
A utilização de espelhos também nos remete facilmente à outra teoria lacaniana. Nina sempre tem um espelho à sua frente e é ali que ela se confronta com a figura do “Outro”. O ódio pela mãe, por exemplo, é projetado, em todo momento, na figura da colega Lilly. O espetáculo exige uma bailarina que possa interpretar o Cisne Branco com inocência e graça, e o Cisne Negro, com perfídia e sensualidade. Nina se adequa ao papel do Cisne Branco perfeitamente; porém, ela tem concorrência: Lilly é a personificação do Cisne Negro, uma mulher atraente e sem culpas. Nina enxerga nela o seu duplo, a sua outra parte. E sente ódio, pois seu superego a pressiona para não entrar em contato com aquele lado obscuro. Todavia, dentro do conflito de seu sistema psíquico, ao mesmo tempo sente inveja e admiração por Lilly.
A partir daí Nina vai ao encontro de si própria para interpretar o papel de Cisne Negro, e começa então uma série de conflitos internos, que passam por alucinações, sintomas de automutilação, ensaios até as últimas consequências de sofrimento corporal e esquizofrenia, chegando ao ponto do espectador não saber o que é real ou não.
Portman dá um show em sua interpretação, o que justificou seu Oscar. É incrível como ela consegue interpretar de forma tão intensa e realística a bailarina Nina. Outro lado psicológico do filme muito bem trabalhado é a busca do “Eu” interior. E novamente somos remetidos à teoria de Jacques Lacan, “O Estádio do Espelho”, em que ele fala exatamente dessa busca do “Eu”.  Nina precisa encontrar a sua sexualidade para chegar o Cisne Negro, mas, para que isso aconteça, é preciso romper, agressivamente, o “contrato” com a mãe, no qual ela tem seu lugar demandado pelo desejo materno.

À medida que as duas jovens bailarinas transformam sua rivalidade em uma amizade conflituosa, Nina começa a ter mais contato com seu lado sombrio, com uma inconsequência que ameaça destrui-la, pois, reconhecendo em si mesma os traços de agressividade e sexualidade (isso aconteceu após sua relação com o chefe da companhia de ballet), e não podendo assumir esses traços (tão necessários ao Cisne Negro), projeta-os para fora, montando em Lilly o seu negativo. Aí é que começam as alucinações onde ambas as personagens se confundem e através das quais Nina consegue exercer sua sexualidade, isto é, através de outra mulher – Para Lacan, não há relação sexual porque a relação não se faz senão com uma imagem, um corpo cujas “demandas” são pervertidas pela exigência de um objeto sem fundamento. A Teoria da Castração, de Freud, explica melhor esse fenômeno.
Pelas razões acima é que, ainda impossibilitada de elaborar o seu “Cisne Negro”, Nina acaba fazendo de Lilly uma ameaça a ser eliminada (ou eu, ou ela) – Lacan cita um relato da escolha que mostra essa situação, de uma ameaça de um ladrão onde ele pergunta: “Ou a bolsa, ou a vida”. Na verdade, não seria uma pergunta, seria uma escolha lógica e única: “Você perde a bolsa e ganha a vida” ou “Perde a bolsa e perde a vida”.

Em relação ao filme, Nina tem que acabar com o outro ameaçador, e como o outro é ela mesma projetada em Lilly, só pode destruí-lo destruindo a si mesma, mutilando seu corpo como ato final e desesperado de libertação da servidão materna.
Foi perfeito” – ela disse, antes de sucumbir. Uma vez atingido exatamente aquilo que buscou a perfeição completa, e se deu conta disso, só lhe restou um caminho: a morte, o fim, porque até mesmo na perfeição do desejo realizado o paranoico é um insatisfeito.
Sem dúvida alguma, achei o filme visceral, estupendo, altamente psicológico, pois me fez ir além de uma tela. Desde o início captei traços de lacanismo no enredo que se descortinava à minha frente e certa semelhança com o “Caso de Aimeé” (sou admiradora da obra de Lacan). Não podia simplesmente afirmar ser um excelente filme: era preciso penetrar na mente de Nina, conhecer as suas motivações, o porquê de seus conflitos para poder entender como se instala uma paranoia na vida de uma pessoa. E tendo em vista a grande repercussão do filme, tenho certeza que muitos se identificaram em algumas partes; afinal, conforme o grande psicanalista Jacques Lacan disse: desde bebês podemos escolher ser um “sujeito faltante” ou um “sujeito neurótico normal”. Aliás, este último perfaz a grande maioria.
Cisne Negro se sustenta bem do início ao fim e merece ser visto. Sem sombra de dúvida, é um dos melhores filmes dos últimos anos. Não sei como não ganhou o Oscar.
Sugestão de livros para quem deseja entender um pouco dos fundamentos de Lacan:
Jacques Lacan - O Seminário IV, A Relação de Objeto – Jorge Zahar Editor, RJ-1995;
Joel Dor - Introdução à Leitura de Lacan, O Inconsciente Estruturado como Linguagem, Artmed Editora, RS-1989.

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