sexta-feira, 18 de março de 2011

Mocinhas, Vilãs e Anti-Heroínas

Sempre preferi as anti-heroínas - ou vilãs, como desejarem - às “mocinhas”, de todos os romances que li.  Mulheres açucaradas, dóceis e submissas jamais me causaram comoção e nem a sensação de ter o peito apertado. Para as “mocinhas” da história, tudo dá certo no final, basta que fechem a boca, os olhos, tapem os ouvidos e chorem muito. Fácil demais e qualquer tolo concorda. Sem contar tudo o que têm de suportar para manter o afeto de seus enamorados, chegando às raias da despersonalização. Aí, tudo se torna previsível demais. São elas que sobreviverão a todos os percalços e serão lembradas como ícones de bondade e abnegação.

Mas há muita diferença entre ser a anti-heroína e a vilã da história. Vilãs são malévolas, traiçoeiras e fazem qualquer coisa para obter o que desejam; até mesmo atentarem contra a vida de quem ousar opor-se a elas. Essas sempre morrem no final – e merecidamente. Já as anti-heroínas, não são tolas ou boazinhas o suficiente para serem “mocinhas” e nem tão malévolas a ponto de serem vilãs. São mulheres que sempre defendem seus pontos de vista, disso jamais abrindo mão. São orgulhosas e não suportam amadorismo por parte de seus parceiros. É claro que são dadas a certas vilanias, mas quem disse que elas desejam ser perfeitas?

As ”mocinhas” da história sempre serão consideradas santas, e qualquer um pode amá-las, até mesmo os desalmados e os falaciosos que se aproveitam de suas santas ingenuidades. Serão muito semelhantes às mães de seus parceiros e a maioria dos homens prefere que seja assim.

Amar uma vilã – ou anti-heroína – é mais difícil: requer certa santidade, pois, se o homem não for um santo, transformar-se-á num diabo. Cá entre nós: santos não existem a não ser em orbes celestiais. Então, o melhor é que o homem seja homem, muito homem, inteligente, esperto e extremamente estrategista para conseguir o coração dessa mulher tão intuitiva, complexa e nada incauta. Uma vilã não é para qualquer um, pois ela não respeita quem seja menos que ela.

Talvez seja por isso que muitos preferem as “mocinhas”. Elas não dão muito trabalho. Basta que a insatisfação pela própria existência de um encontre espaço no coração carente do outro. Entendam isso como encontro de almas, espíritos, discursos românticos, teorias de relacionamento, anjos, gnomos, fadas, príncipes encantados e interpretações filosóficas.

Vilãs dão muito trabalho. Para começar, são mulheres que nada têm de incorpóreas ou etéreas. Nada desvia seus olhares do real. Em vez de poesia, é a excitação do momento que conta. Em vez da conexão espiritual, é o toque e o cheiro que a farão optar por um amor não vivido a um amor mal vivido.  Vilãs não são resignadas e nem conformistas, são guerreiras mesmo que se deem mal no final. Nenhuma transcendência espiritual paga a liberdade de ser o que se é e estão pouco ligando para normas e convenções sociais. Antes reinar no inferno do que servir no paraíso (tocar harpa, usar batinha cor de rosa e fazer xixi pelo umbigo deve ser horrível).

Jamais fui a “mocinha” das histórias que vivi e nem a vilã. Prefiro o epíteto de anti-heroína, mesmo que já tenha sido designada por vários outros codinomes, tais como: cartesiana, lacaniana, prolixa, impulsiva, agressiva, instável, inconstante, maquiavélica, proteiforme etc. Infelizmente, mil e uma desculpas são inventadas para justificar o fato de uma mulher fugir de certos padrões impostos pela sociedade e ter personalidade própria.  Então, inventam essas coisas quando o mais correto seria aceitar que nem todas as mulheres nasceram para a subserviência. Pior é quando inventam que a nossa famosa “intuição feminina” não passa de “minhocas nas nossas cabeças” ou que a nossa inteligência é artificial, o que nos transforma em robôs sem alma.

Como sempre amei as vilãs e anti-heroínas, justamente por serem as maiores suscitadoras de emoções que existe, vou enumerar as minhas personagens preferidas. Toda é qualquer semelhança comigo será mera coincidência.


AURÉLIA CAMARGO – ROMANCE “SENHORA”, DE JOSÉ DE ALENCAR



Aurélia é a protagonista do romance, uma jovem mulher dividida entre o amor e o ódio, o desejo e o desprezo pelo homem que ama. Essa personalidade dividida apresenta um desvio psíquico ocasionado a partir do rompimento do noivo, Fernando Seixas, que a troca por uma mulher de mais posses, o que causou certo caso de esquizofrenia na personagem.

Todavia, Aurélia é decente e apaixonada por Fernando Seixas. A decepção amorosa transforma-a num mulher vingativa e fria, mas que não consegue disfarçar seu verdadeiro sentimento por Seixas. De personalidade forte, carregada de sentimentalismo romântico, sua personalidade é marcada por extremos psíquicos: dá maior valor aos sentimentos, mas vale-se do dinheiro que herdou de um parente para atingir seu objetivo de obter o grande amor de sua vida. Todavia, sua aparente esquizofrenia a conduz à dúvida quanto às intenções de Fernando Seixas. O comportamento esquizoide manifesta-se nas atitudes antiéticas de desejar o amor do marido com todas as suas forças, mas lutar contra o mesmo até suas últimas reservas.

De "régia fronte, coroada de diadema de cabelos castanhos, de formosas espáduas", essa personagem, no entanto, é ao mesmo tempo "fada encantada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra". Ao estereótipo da "mulher-anjo" romântica, o narrador acrescenta, assim, um elemento demoníaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupão de cambraia que a luz do sol não ilumina", e também "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo o frêmito que lembrava silvo de serpente" ou quando "o braço mimoso e torneado faz um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo". Tal caracterização, por sua vez, humaniza a personagem, afastando-a do maniqueísmo romântico e acrescentando-lhe traços realistas.

SCARLETT O’HARA, DO FILME “E O VENTO LEVOU” (1939)



Era uma jovem mimada e petulante, admirada por sua beleza e adorada por praticamente todos os homens de sua comunidade. A única coisa que não conseguia era o amor da pessoa que realmente a interessava. Frustrada porque o homem por quem era apaixonada casou-se com outra, torna-se o oposto de sua rival: inconstante sentimentalmente, instável emocionalmente, manipuladora, egoísta e superficial, procurando sempre ser o centro das atenções e agindo de modo dramático, exibicionista e exigente.

Scarlett é uma personagem cativante demais, mesmo em suas atitudes irritantes e mesquinhas, graças à interpretação de Vivian Leigh, que a soube incorporar perfeitamente, dando-lhe vida através dos gestos e do olhar expressivo.

Mas, anti-heroínas têm salvação. Somente quando é obrigada a lutar pela sua sobrevivência, ao passar pelo sofrimento da fome e da pobreza, é que surge a veia de luta e a força interior em Scarlett, o que a transforma numa grande otimista apesar das dificuldades, pois, afinal, “amanhã é outro dia”.


CATHERINE EARNSHAW – DA OBRA “O MORRO DOS VENTOS UIVANTES”.



Jovem mimada, de espírito livre, ama Heathcliff tanto quanto ele a ama, porém não o considera digno de ser seu marido. Casa-se então com o rico Edgar Linton. Anos mais tarde, após o retorno de Heathcliff, as constantes disputas dos dois homens por seu amor deixam-na debilitada mental e fisicamente, pois se vê dividida entre a segurança e a estabilidade de Edgar e o amor profundo por Heathcliff, cuja natureza passional é idêntica a dela.

Catherine também é descrita como uma pessoa de temperamento explosivo, de sentimentos intensos e, por vezes, passionais. Ela também demonstra dificuldade em controlar suas emoções, possuindo acessos de fúria incontroláveis (a cena em que destrói um travesseiro de penas é impagável).

Catherine morre no final, mas não era uma vilã. Apenas era uma mulher que vivia na linha tênue entre a loucura e a normalidade, devido ao grande amor que nutria por Heathcliff.

Uma das passagens que mais me emocionou é quando ela diz a Nelly: “Qual seria o sentido de eu ter sido criada, se estivesse contida apenas em mim mesma? Os grandes desgostos que tive foram os desgostos de Heathcliff, e eu senti cada um deles desde o início: o que me faz viver é ele. Se tudo o mais acabasse e ele permanecesse, eu continuaria a existir; e, se tudo o mais permanecesse e ele fosse aniquilado, eu não me sentiria mais parte do universo. Meu amor por Linton é como a folhagem de um bosque: o tempo o transformará, tenho certeza, da mesma forma que o inverno transforma o arvoredo. O meu amor por Heathcliff lembra as rochas eternas: proporciona uma alegria pouco visível, mas é necessário. Nelly, eu sou Heathcliff! Ele está sempre, mas sempre, no meu pensamento; não como uma fonte de satisfação, que eu não sou para mim mesma, mas como eu própria”. 


LADY MACBETH – DA TRAGÉDIA “MACBETH”, DE WILLIAM SHAKESPEARE



Lady Macbeth é, sem dúvida, uma personagem poderosa, a força que cria toda a ação trágica da peça.

O poder de Lady Macbeth não está no fato dela ter se tornado uma rainha, uma mulher politicamente poderosa, mas no fato dela ser capaz de todos os atos para obter o que deseja, manipulando seu marido e induzindo-o a matar pelo poder e o trono do reino. Ela não usa seu poder agindo, matando, guerreando: ela pensa e induz a ação, utilizando seu poder e seu conhecimento sobre o marido para manipulá-lo e guiá-lo a fazer suas vontades, é ela quem não se conforma por estar numa posição que a desagrada. O amor que existe nela é pelo poder, que no decorrer da peça também invade seu marido.

Poder é impor sua vontade acima da vontade dos outros, tornando a política algo insano e sem regras. Lady Macbeth agiu politicamente, conquistou o seu poder, o impôs sobre a vida do rei sem pensar em moralidades ou um bem que não fosse seu.

Muitos interpretam a Lady como uma personagem amoral, fazendo uso da perversidade, meios criminosos, sem problema algum em ser contrária às leis humana e divinas, mas ela soube ser esposa e estrategista ao mesmo tempo, se valendo de todas as possibilidades. As articulações racionais não são na peça uma especificidade masculina e nem a mulher da peça é carregada de emoção ou tem suas ações guiadas pelo marido. Ela é a cabeça pensante e não a mulher assexuada, mãe, mulher submissa, símbolo do bem. Lady Macbeth, por sua pura vontade, faz o mal que deseja parecer um bem.

Ao final da peça, tanto Macbeth quanto Lady são eliminados, porém, em nenhum momento se vê a redenção de nenhum deles, pois o mesmo mal que destrói é aquele que gerará o bem, através da reflexão e da moralização na política.


SUSAN CALVIN – DO CONTO “INTUIÇÃO FEMININA” E DE VÁRIOS OUTROS DO ESCRITOR ISAAC ASIMOV.

Isaac Asimov é um dos maiores escritores de ficção científica de todos os tempos. Seus livros “Eu, Robô” e os “Os Novos Robôs” contêm as famosas “Três Leis da Robótica”, que regeriam toda a atitude das máquinas frente aos humanos.
Nos contos desses livros há a quase onipresença de uma personagem, a robopsicóloga Susan Calvin. Magra, de pequena estatura, ríspida, intolerante – diziam que ela própria era um robô, de tanto que defendia as máquinas em relção aos seres humanos.
Susan foi um dos personagens mais ricos de Asimov, sempre apresentada como uma mulher extremamente inteligente, embora emocionalmente fria, que costumava bater os homens em seu próprio jogo, sem pedir favores. Asimov confessava ter se apaixonado por esta personagem, a ponto de ter expulsado Powel e Donovam das histórias de robôs.
Ela não é tão fria e indiferente quanto aparenta ser, mas para ela a mente é mais importante do que sentimentos. É uma personagem que transita entre o sujeito histórico ativo e passivo, a heroína e anti-heroína, a frieza racional e a instabilidade emocional. Ambígua, densa e fascinante: assim é Susan Calvin, essa grande mulher criada por Isaac Asimov.
Sob a capa de uma inteligência frígida e de um  pragmatismo impassível, a Dra. Calvin oculta uma Susan repleta de angústias e emoções frágeis, com medo de errar e que até já sufocou uma paixão. Tanto estudo, dedicação e confiança destinados aos robôs é uma canalização da descrença e íntimo desdém que sente pelos humanos (infalibilidade ética dos robôs X suscetibilidades e imperfeições do homem).
Para finalizar, cito duas frases memoráveis da Dra. Susan Calvin:
Vocês, homens, tendo de se defrontar com um a mulher que chega a uma conclusão correta, e incapazes de aceitarem o fato de que ela é igual ou superior em inteligência a vocês, inventam alguma coisa chamada de intuição feminina”.
“Às vezes é difícil escolher se devemos nos sentir revoltadas com o sexo masculino ou simplesmente colocá-lo num plano de coisas desprezíveis”.

Anti-heroínas não suportam ser subestimadas. Aliás, para alguns, mulheres poderosas são insuportáveis, e são justamente as que se interessam pelo mundo masculino e se mostram racionais e não emocionais é que são as mais insuportáveis. Todavia, são elas que fornecem os melhores enredos.

Se você não está preparado para uma mulher forte, esqueça todas essas anti-heroínas e vá ler algum antigo romance da Bárbara Cartland ou vá buscar seu par em algum Centro Espírita, pois as duas alternativas possíveis para suportar uma anti-heroína são: ame-a ou deixe-a, mas jamais a engane ou a faça de tola, pois correrá o risco de enxergar em uma só mulher todas as forças devastadoras da natureza humana.

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