quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Compromissofobia

Deus marinho da mitologia grega, Proteu era rei da ilha de Pharos, no Egito, onde foi construído o Farol de Alexandria, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Proteu tinha o dom da profecia e se metamorfoseava para escapar aos perseguidores ou a quem o buscava para saber os acontecimentos futuros. Se alguém conseguisse vencer o medo perante as formas horríveis e terríveis que assumia, ele revelava a verdade, como sucedeu com Menelau, o rei de Esparta, que queria saber se e como podia voltar à sua terra, após a guerra de Troia.
Deste mito é que surgiu o termo “proteiforme” para designar tudo o que muda de forma frequentemente.
Zygmunt Bauman chama os tempos atuais de “líquidos”, porque tudo muda rapidamente. Nada é feito para durar, para ser “sólido”. São tempos “proteiformes”, e por mais que tentemos negar, não há como fugir desta realidade: a vida se passa na companhia da incerteza. E não foi a vida que mudou: nós é que mudamos.
Mudamos tanto, que hoje não dizemos mais “para sempre”, pois a única certeza que podemos ter quando iniciamos algum tipo de relacionamento, é que pode acabar um dia. O mais certo seria repetirmos a célebre frase do general Júlio César, que exclamou “Alea Jacta Est” – a “sorte está lançada” - antes de atravessar o rio Rubicão e dar início à primeira guerra civil do mundo.
E por não confiarem tanto na sorte (talvez em si mesmos) ou por recearem o tipo de “guerra” que poderá ser desencadeada, é que muitas pessoas estão sofrendo de “compromissofobia”. Aliás, talvez este termo venha a figurar como a mais nova doença diagnosticada no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Problemas Mentais (DSM) e vir a tornar-se mais um motivo para psiquiatras receitarem “fornecedores de sensações temporárias de felicidade” àqueles que não conseguem manter um relacionamento duradouro.
O medo de assumir um compromisso amoroso faz com que cada vez mais as pessoas se assumam como seres solitários e optem por relacionamentos eventuais que não exijam rotina massacrante. É um meio termo entre manter-se sozinho, mas, ao mesmo tempo, sentir-se acompanhado.
A verdade é que as pessoas estão com medo. Medo da violência, medo de adoecer, medo de ser abandonadas à própria sorte, medo de empobrecer, medo de amar etc. Sabe-se lá que forma terrível a sensação de perigo poderá tomar quando metamorfosear-se em verdades que teremos de enfrentar.  O problema não é ter medo: o problema é como o enfrentamos.
Contra a violência, doenças e outras contingências, a medida possível é precaução a fim de minimizar a exposição de riscos. Mas em relação ao ato de amar não há como precaver-se. Quando este se apossa do nosso ser, é um risco de vida ou morte, sem que possamos evitar. Ninguém foge daquilo que mais quer. Só que é como assinar um cheque em branco. Um relacionamento tanto pode ser motivo de desconforto ou de sofrimentos inimagináveis ou de bem-aventurança. Como o Fausto de Christopher Marlowe: “Desejar que um momento de alegria permaneça o mesmo indefinidamente é uma forma segura de obter um compromisso por prazo indeterminado com o inferno em vez da felicidade”.
Todavia, muitas pessoas minimizam o risco de sofrer por amor preferindo compromissos lights, que são aqueles que reduzem seu tempo de duração para que ele seja o mesmo da satisfação que produzem: o compromisso é válido até que a satisfação desapareça ou caia abaixo de um padrão aceitável – e nem um instante mais. Digo isso porque me lembrei de um brinde feito por uma noiva ao noivo: “Brindo a mim e a ti. Serei fiel enquanto tu fores, nem um minuto a mais”.
E o que vejo por aí são inúmeras pessoas perseguindo a felicidade, desejando ardentemente causar um impacto na vida de outra pessoa, sentir-se necessárias, insubstituíveis, mas, ao mesmo tempo, temendo que um possível convívio signifique um compromisso do qual não poderão fugir. Tudo tem um preço, e o preço que a felicidade estabelece nem todos estão dispostos a pagar.
Pois amar é basicamente dar, não receber. Significa estar pronto a abandonar a preocupação consigo mesmo em favor do objeto amado, transformar sua própria felicidade num reflexo, um efeito colateral da felicidade desse objeto. E como se entregar a algo cujo destino pode terminar em frustração ou num investimento “a fundo perdido”?
Mas nem tudo é “proteiforme” por conveniência ou por medo. Há quem viva num estado de transformação permanente, tornando-se uma pessoa diferente daquela que tem sido até então, rompendo e removendo a forma que se tinha, tal como uma cobra que se livra de sua pele, para tornar-se um ser mais capacitado a lidar com as adversidades e com os medos. É uma destruição criativa de si mesmo, e desta destruição resultará a transformação de um ser que simplesmente deseja para um ser que ama, e que pagará o preço que for necessário para poder ser feliz. Afinal, nem tudo resulta em perdas e danos, mas também em bens que não se pode comprar: como reunir-se em torno de uma mesa com comida preparada em conjunto para ser compartilhada, ou ter uma pessoa que nos é importante ouvindo com atenção uma longa exposição de nossos pensamentos, esperanças e apreensões mais íntimas, e provas semelhantes de atenção, compromisso e carinho amorosos.
Não é nos prazeres frágeis e efêmeros que podemos encontrar a felicidade. Isso significa correr atrás dela, não chegar até ela. Para ter alguma certeza na vida é preciso haver um sentido de permanência e não de incerteza. E esse sentimento só pode vir de um sedimento do tempo, do tempo preenchido com certos cuidados – sendo estes o fio precioso com que se tecem as telas resplandecentes da ligação e do convívio.
Sim, podemos ser “proteiformes” a hora que desejarmos. Não é Deus nem a natureza, tampouco a sociedade que nos define, que nos dá forma, que nos molda por completo ou nossa conduta. Somos o que queremos ser, o que escolhemos ser, e sempre poderemos mudar o que somos diante das contingências a que estamos sujeitos.
Este post é dedicado a duas pessoas: à pessoa que me adjetivou de “proteiforme” e à pessoa que me mostrou, a duras penas, que valores morais não são limites para o que chamamos de liberdade.
E com tanta capacidade “proteiforme”, agora eu sei.
Eu sei que nunca se sabe.

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