sábado, 19 de fevereiro de 2011

Perspectivas

Eu soube que ela não havia dormido bem no momento em que a olhei. Olhos congestionados, olhar de desamparo, desanimada. Arrastava-se pela casa como um zumbi. Nem sequer a louça da noite anterior dignou-se a lavar. Pegou um livro; largou-o em seguida. Ligou a televisão, mas desligou-a, diante do noticiário que só anunciava tragédias. Eu fiquei observando-a, curiosa. Por fim, sentou-se e ficou imóvel. Imaginei o que devia estar passando por aquela cabeça e tudo me levou a um só pensamento: ela está se sentindo sem perspectivas em um daqueles dias em que tudo parece igual ao dia de ontem. Foi quando decidi intervir. Fi-la tomar um banho bem demorado, perfumar-se, maquiar-se e vestir algo atraente. Ela protestava a cada tentativa minha de torná-la bela. “Para quê? Que motivos tenho para sair de casa hoje, quando me sinto tão péssima?” – dizia. “Deixa-me quieta no canto e tudo vai passar“ – insistiu.
Como boa amiga, não desisti. Para que servem os amigos nesta hora? Amigo que é amigo sabe que sofrer junto não leva a nada, porque cada um tem seus próprios problemas e sofre de maneira diferente; então, o melhor é não rebaixar o estado de espírito para poder nivelar-se ao do amigo, mas fazer com que o outro eleve o seu para se sentir melhor. Isso não significa tentar resolver os problemas dele, mas fazer com que ele os enxergue sob outra perspectiva.
Depois de prontas, saímos para caminhar. A todo instante eu apontava algo que podia ser interessante e comentava a respeito. Podia ser até uma placa mal localizada ou algum motorista afoito que mais parecia um troglodita no trânsito. Repetia trechos espirituosos que havia lido em algum livro, para distraí-la e fazê-la desviar os pensamentos. Aos poucos o ar taciturno dela dava lugar a um semblante mais leve e ela conseguia sorrir.
Numa esquina, à nossa frente, um indigente desmaiou. Dirigimo-nos ao lugar onde ele havia caído, mas antes que chegássemos ao local, outras pessoas já estavam lhe prestando os primeiros socorros. Paramos e ficamos olhando a cena. Foi então que os olhos da minha amiga se iluminaram de vez e encheram-se de lágrimas, não mais devido aos seus problemas, mas ao belo gesto de caridade que presenciava.  O mendigo vestia-se com farrapos, estava descalço e sujo, mas as pessoas que o socorriam nem se importavam. Enquanto minha amiga ligava para a SAMU, eu observei que muitas pessoas observavam o mendigo caído com certa repulsa. Homens, na maioria.  Uma senhora bem vestida sentou-se no chão e segurou a cabeça do coitado, enquanto outra lhe tomava o pulso. Outra senhora segurava a mão dele, como que para confortá-lo. Tanto eu quanto minha amiga tivemos os mesmos pensamentos: o desejo de ajudar ao próximo que sofria foi muito maior que o medo de sujar-se ou pegar alguma doença. Esta é a verdadeira caridade. Muitas daquelas pessoas se esqueceram do medo e de seus próprios problemas para ajudar uma criatura que nada tinha, que talvez nem tivesse mais fé e esperança. E foi com esse pensamento que nos afastamos quando a ambulância chegou.
Não precisei comentar nada à minha amiga. Ela soube. O pior sentimento que uma pessoa pode ter a respeito de si mesma é sentir-se inútil, com menos valia, não tendo motivos para tal. E que, antes de vasculharmos os recônditos da nossa alma à procura de defeitos, antes de passarmos outra pessoa sob o nosso crivo de qualidade a fim de enxergamos somente o que as torna imperfeitas, é preciso, em vez disso, procurarmos o que existe de bom, caridoso e generoso, tanto em nós quanto nos outros. É isso que faz o mundo realmente valer a pena. Olhando o mundo e as pessoas com perspectiva diferente, podemos enxergar o que olhos sem amor ou bondade jamais enxergariam.
Sentindo-me imbuída de bons pressentimentos convidei minha amiga para tomarmos um café no Shopping. Depois do café, uma sessão de cinema, com direito a pipocas e guaraná. Anoitecia quando retornamos para casa. Ela, com toda a gratidão que era capaz, agradeceu-me por ser sua melhor amiga e que não teria tido companhia melhor para aquele dia que poderia ter sido tão triste e solitário.
Bem, para encurtar a história, ambas as amigas eram a mesma pessoa: eu. Fui eu que acordei mal e sentindo-me “feia” naquele dia. E, como costumo fazer, tento ser uma boa companhia para mim mesma. Nem sempre sou caridosa com as palavras quando preciso de motivação. É mais ou menos assim: ”Levanta daí, bobalhona”. “Para de se sentir um traste e vá dando um jeito nesta cara que está mais parecida com a da noiva do Frankenstein do que com a sua verdadeira”. “Arruma-te, pois nem um sapo cururu vai-te querer deste jeito”.
Este é o meu segredo para jamais ceder aos maus pensamentos. Ser a minha melhor amiga e dividir-me quando é preciso: uma parte de mim sente; a outra observa e age.
De acordo com o filósofo alemão Martin Heidegger, “estar só é condição de todo ser humano, desde o momento em que é lançado ao mundo”. O ato de viver só se torna interessante quando as solidões são compartilhadas, não a vida, pois cada pessoa é responsável pelo que decide viver. Ninguém adoecerá, viverá ou morrerá em nosso lugar.
O problema reside na escolha que fazemos: ou aceitamos a solidão como preço da nossa liberdade ou a vivenciamos como se fosse abandono. Esta última alternativa é a opção dos derrotados, que esperam sempre que a outra pessoa lhes forneça os significados dos quais necessitam para ser felizes. Ótima alternativa para quem espera passar por essa existência sendo um coadjuvante ou secundário, mas não para quem deseja ser o autor de uma bela história de vida e fazer dela uma obra de arte.
Durante muitos anos esperamos encontrar alguém que nos compreenda, alguém que nos aceite como somos, capaz de nos oferecer felicidade apesar das duras provas. Apenas ontem descobri que esse mágico alguém é o rosto que vemos no espelho”. (Richard Bach)

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