Acontece em abril,
nessa curva do mês que descamba para a segunda metade. Os boletins
meteorológicos não se lembraram de anunciá-lo em linguagem especial. Nenhuma
autoridade, munida de organismo publicitário, tirou partido do acontecimento.
Discretos, silenciosos, chegaram os dias lindos.
E aboliram, sem
providências drásticas, o estatuto do calor. A temperatura ficou amena,
conduzindo à revisão do vestuário. Protege-se um tudo-nada o corpo, que vivia
por aí exposto e suado, bufando contra os excessos da natureza. Sob esse mínimo
de agasalho, a pele contente recebe a visita dos dias lindos.
A cor. Redescobrimos
o azul correto, o azul, que há meses se despedaçara em manchas cinzentas no
branco sujo do espaço. O azul reconstituiu-se na luz filtrada, decantada, que
lava também os matizes empobrecidos das coisas naturais e das fabricadas. A cor
é mais cor, na pureza deste ar que ousa desafiar os vapores, emanações e
fuligens da era tecnológica. E o raio de sol benevolente, pousando no objeto,
tem alguma coisa de carícia.
O ar. Ficou mais
leve, ou nós é que nos tornamos menos pesadões, movendo-nos com desembaraço,
quando, antes, andar era uma tarefa dividida entre o sacrifício e o tédio?
Tornou-se quase voluptuoso andar pelo gosto de andar, captando os sinais
inconfundíveis da presença dos dias lindos.
Foi certamente num
dia como estes que Cecília Meireles escreveu: "A doçura maior da vida flui
na luz do sol, quando se está em silêncio. Até os urubus são belos, no largo
círculo dos dias sossegados". Porque a primeira consequência da combinação
de azul e leveza de ar é o sossego que baixa sobre nosso estoque de problemas.
Eles não deixam de existir. Mas fica mais fácil carregá-los.
Então, é preciso
fazer justiça aos dias lindos, oferecer-lhes nossa gratidão. Será egoísmo
curti-los na moita, deixando de comentar com os amigos e até com desconhecidos
que por acaso ainda não perceberam o raro presente de abril: "Repare como
o dia está lindo". Não precisa botar ênfase na exclamação. Pode até
fazê-la baixinho, como quem transmite boato e não deseja comprometer-se com a
segurança nacional. Mesmo assim, a afirmação pega. Não só o dia fica mais
lindo, como também o ouvinte, quem sabe se distraído ou de lenta percepção
sensorial, ganha a chance de descobri-lo igualmente. Descobre e passa adiante a
informação.
A reação em cadeia
pode contribuir para amenizar um tanto o que eu chamo de desconcerto do mundo.
De onde se conclui: deixar de lado, mesmo por instantes, o peso dos
acontecimentos mundiais trágicos, esmagadores, para degustar a finura da
atmosfera e a limpidez das imagens recortadas na luz, é um passo dado para
reduzir o desconcerto, na medida em que a boa disposição de espírito de cada um
pode servir de prefácio, ou rascunho de prefácio, à pacificação, ou relativa
pacificação, dos povos e seus dominadores. Em vez de alienação, portanto, o
prazer dos dias lindos é terapia indireta.
Pode ser que o
desconhecido lhe responda com um palavrão, desses em moda na sociedade mais
fina. Não faz mal. Não se ofenda. Ele descarregou sobre a sua observação amical
o azedume que ameaçava corroê-lo no íntimo. Livre desse fel, talvez se habilite
a olhar também para o céu e a descobrir mesmo certa beleza esvoaçante no urubu.
De qualquer modo foi avisado. Já sabe o que estava perdendo: a consciência de
que certos dias de abril e maio são mais lindos do que os outros dias em geral,
e nos integram num conjunto harmonioso, em que somos ao mesmo tempo ar, luz,
suavidade e gente.
(Carlos Drummond de
Andrade, crônica publicada no Jornal do Brasil, no final dos anos 1970).
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