Quando sequestraram o
embaixador Elbrick, em 1969, os autores do atentado exigiram a divulgação, em
toda a grande mídia, de um longo manifesto. Imaginem o constrangimento imposto
aos detentores do poder: locutor oficial proclamando à nação um libelo contra o
regime deles. O texto foi exibido. O país parou para ouvir, ver e ler.
Redigira-o o jornalista Franklin Martins, um dos sequestradores. Oportunidade
dourada para os insurretos afirmarem seus compromissos com a democracia e
cobrá-los do governo, não é mesmo? Qual o quê! O texto (íntegra em
"Charles Burke Elbrick" na Wikipedia) foi uma catilinária comunista
que falava do que os revoltosos entendiam: ideologia, violência,
"justiçamentos", sequestros, assaltos.
Disse alguém, com
razão, que os confrontos históricos se travam no tempo dos fatos e retornam no
tempo das versões. Durante os governos militares, a esquerda que pegou em armas
foi derrotada. Mas se deu muito bem nas versões. Indague às pessoas com menos
de 40 anos, que não viveram no tempo dos fatos, sobre a imagem que têm do
Brasil naquele período. Poucas terão ouvido algo que não fosse para representar
um quadro de horrores patrocinados pelos governos militares. Peça-lhes opinião,
também, sobre os que partiram para a luta armada e perceberá que são vistos
como jovens idealistas, mártires de uma resistência democrática.
Repita as perguntas
aos que viveram o tempo dos fatos. Perceberá que apesar das muitas e graves
restrições que se faz e se deve fazer ao regime de então, aquela versão quase
unânime entre os mais jovens estará longe de ser majoritária neste grupo.
Relatarão que o Brasil não foi, naqueles anos, o que hoje se ensina. Com maior
surpresa ainda, perceberá que os terroristas e suas organizações praticamente
não têm simpatizantes entre os que testemunharam os acontecimentos por eles
protagonizados. Aliás, fracassaram por absoluta falta de apoio popular.
Escassos serão os que lhes atribuem qualquer mérito na necessária
redemocratização. Com razão dirão que a retardaram. Não os reconhecem como
democratas.
Valerá a pena ir
além. Pergunte aos que viveram apenas no tempo das versões o que sabem sobre
Ulysses, Covas, Teotônio, Montoro, Brossard, para citar alguns dos muitos que,
no embate político foram forçando a porta da abertura. E a abertura da porta.
Nada saberão porque não lhes foram mencionados! O que importa, à versão, é
desprezar o processo político útil para exaltar o revolucionário inútil.
Capisce? Menor ainda será o conhecimento sobre o papel das lideranças
empresariais, sindicais e religiosas que se empenharam pela normalidade
institucional. A contribuição dos militantes da luta armada para a democracia
foi a mesma que as cheias do Nilo prestam à venda de ingressos para os shows da
Broadway. Não li um único livro escrito por intelectuais de esquerda
participantes daquelas organizações que se atrevesse a estabelecê-la. Antes,
negam-na com firmeza.
Convém aos que, após
a abertura e a anistia, ingressaram no jogo político, posar de estátua da
liberdade diante do porto de Nova Iorque. Volta e meia algum ministro, olho na
versão, reverencia os que lutaram pela democracia apontando para as pessoas
erradas. "E o título? E o título?" perguntará o leitor, vendo que o
artigo termina. Ora, o filme "Um dia, um gato" ganhou o Prêmio do
Júri no Festival de Cannes de 1963. Conta sobre um gato com óculos mágicos.
Quando olhava para as pessoas, elas adquiriam uma cor relacionada com seus
defeitos e virtudes. Era um pânico na cidade. Os mentirosos, por exemplo,
ficavam roxos.
*Publicado no jornal Zero
Hora, em 01/07/2012.
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