O que leva uma pessoa aparentemente normal a matar? Os noticiários estão repletos de notícias sobre pessoas que sempre tiveram bom comportamento perante a sociedade e que, no entanto, num momento de desequilíbrio mental, agiram como loucas, matando por ciúmes, dinheiro, separação, rejeição etc. Já não bastava o alto índice de psicopatas que matam para usurpar bens alheios, ainda temos de nos cuidar com pessoas que podem fazer parte da nossa convivência diária.
Uma pessoa próxima revelou-me que sofreu perseguição de uma amiga, a qual não suportava que ela fosse mais bonita, mais magra e atraente. Aparentemente, sua amiga se comportava de maneira dócil e amigável quando estavam juntas, mas, na privacidade de seu quarto, arquitetava um plano para matá-la, plano esse descoberto quando a mãe da “psicopata”, desconfiada pelas atitudes um tanto estranhas da filha, resolveu investigar o computador dela. E estava tudo ali, passo a passo, um plano de como ela iria matar a amiga. É claro que a dita cuja foi internada imediatamente.
Li o livro Os Olhos de Laura, do psicanalista e psiquiatra J. D. Nasio, no afã de entender a sistemática de um fenômeno psicótico. No livro, o autor diz que todos somos loucos em algum recanto de nossas vidas, que ninguém está livre, mesmo sendo sadio, de agir cegamente quando rompe, de uma maneira ou de outra, com a realidade. E essa loucura pode ser apenas passageira, limitada a um único aspecto da vida de um sujeito normal.
Num doente psicótico, essa ruptura com a realidade é perceptível através de comportamentos bizarros e perigosos. Já num sujeito normal, pode se manifestar por excessos ocasionais, em atitudes incoerentes quando se vê atingido por situações de perda ou de rejeição (dinheiro, cônjuge, filhos, doença, trabalho etc.).
Neste caso, há sempre a justificativa que o outro foi o responsável pelo sofrimento dele. Isto é notado através do que geralmente costuma ocorrer: o louco ocasional raramente tira a própria vida. Ele tenta eliminar a quem julga ser o responsável pelo seu sofrimento. Conforme Nasio: “A mente cega curva a realidade à sua ideia (microdelírio circunscrito e ocasional), ao invés de submeter sua ideia à realidade”.
E por que isso acontece? Por que uma pessoa normal pode ter esses efêmeros microdelírios?
Já que podemos ser loucos a qualquer momento, é importante saber o que pensa o psicanalista. Ele afirma que, ainda que equilibrada, uma pessoa pode ter escondida, em algum lugar de seu inconsciente, uma fantasia ou trauma que pode explodir num acesso de loucura quando confrontada com a realidade.
Num trecho do livro ele relata que, ao término de uma consulta, ele encontrou, à saída de seu consultório, a paciente que recém havia atendido. Ela estava aos prantos. Numa primeira impressão, ele pensou: “Vi alguém chorar”; todavia, corrigiu-se a tempo: “Não vi alguém chorar, vi olhos chorarem”. Ele quis dizer que foi impossível, naquele momento, perceber a emoção em estado puro daquela pessoa, a qual somente seria possível quando essa emoção fosse destacada de quem a estava vivendo, perscrutando os recônditos de sua mente.
Eu gostei da analogia do Nasio entre um ser humano e o doce chamado mil-folhas, doce feito de várias camadas, a qual ele vem expondo desde 1979. Todos nós somos uma pluralidade de pessoas psíquicas, onde vários estados subjetivos, sadios e doentes, coexistem. Não é à toa que, às vezes, dormimos com pessoas felizes e sorridentes e, no dia seguinte, acordamos com criaturas azedas e intratáveis.
Acreditamos ser “um”, quando, conforme Nasio, somos “vários”. E entre os “vários” que nos compõe, um está sob o domínio de uma fantasia venenosa.
Eis um excerto do livro:
“Sou uma pluralidade de pessoas psíquicas, geralmente normais, por vezes patológicas, empilhadas e ligadas entre si por um fio invisível que consolida minha unidade”.
É claro que a maioria consegue coexistir em paz com todas as suas “camadas”, mas uma minoria fica alienada a uma fantasia tóxica e não consegue dominá-la quando algum mecanismo (somente a neurobiologia e a psiquiatria podem explicar) a faz vir à tona e leva o sujeito a um acesso de loucura.
A hipótese psicanalítica de Nasio é que a desestruturação psíquica leva vários anos para se manifestar. Pode surgir na adolescência ou na idade adulta, mas a sua incubação leva vários anos. Então, uma neurose surgida tardiamente seria uma defesa ruim em relação ao mal que ela quer afastar.
“A psicose é a consequência de um trauma infantil do qual o EU não cuidou direito” – diz ele; ou seja, “uma psicose não é o trauma em si, é a reação RUIM do EU contra o trauma”. E o remédio ruim pode ser pior que o mal que ele combate. Para Nasio, o remédio ruim, a defesa ruim, chama-se RECALCAMENTO.
Em sujeitos com pleno domínio de suas faculdades mentais, uma situação penosa é admitida, mas o que se busca é o esquecimento, dar a volta por cima. O esquecimento é uma forma de amortecer algum golpe que tenhamos levado na vida, seja em qualquer âmbito. É uma defesa boa. Para aqueles que não têm esse discernimento, o recalcamento possui outro nome: foraclusão.
No livro de Nasio é explicado que quem foraclui não sente a dor que causa aos outros, é como se as suas emoções ficassem anestesiadas e ele não tivesse consciência da violência que pode gerar. É a neurose em seu mais alto grau, a que torna um sujeito psicótico de fato.
No caso da história que me foi contada, a mulher que se sentia recalcada em relação à outra – há pouco tempo ocorreu o caso de um empresário que matou o namorado da sua ex-mulher, por não ter aceitado a separação, e que tramou a morte do rival durante um ano - ela teve uma defesa ruim para seus traumas. Só Deus e o psiquiatra que está cuidado dela podem saber que tipo de trauma infantil levou-a a “foracluir”. Era uma mulher normal até que uma amiga tornou-se capaz de ser mais atraente que ela e ter mais sucesso em relação ao sexo oposto. No caso do empresário, era um homem normal até que a mulher o deixou depois de 25 anos de casamento.
Não acredito que pessoas assim devam ir para cadeia de imediato. Cadeia é lugar de bandido, de criminosos sem chances de recuperação, psicóticos que matam por prazer, predadores que se excitam com o cheiro do sangue. Para estes a prisão deve ser perpétua, pois todas as suas “camadas” são doentes e irrecuperáveis.
Para aqueles que agem como loucos em algum momento de suas vidas, mas que conseguem preservar regiões saudáveis em seu psiquismo, primeiro deve ser dado tratamento psiquiátrico, atendimento psicológico, para que, quando tiverem de pagar pelo crime cometido (sim, acho que devem ser punidos), possam ter consciência do mal que geraram e, assim, entenderem por que estão pagando e pelo quê. Só pode se regenerar aquele que tem consciência do mal que pode causar aos outros devido ao seu recalque. Afinal, uma defesa considerada sempre boa para a superação de traumas é saber perder.
Lembro-me de tantas pessoas que sofreram perdas e sofrimentos atrozes e que, mesmo assim, se tornaram grandes exemplos de superação e lição de vida. São pessoas que tiveram reações boas para se defenderem de seus traumas. Luiz Fernando Oderich, da ONG Brasil sem Grades, diria que famílias estruturadas, cujos pais zelam para que seus filhos tenham tanto saúde física quanto mental, geram “mil-folhas” perfeitos. Eu concordo plenamente. Mas há aqueles que nem família possuiu e sempre mantiveram controle sobre suas emoções. A estes eu chamo de “confeiteiros de si mesmos”. Com amor e boa vontade, qualquer prato torna-se um néctar dos deuses, mesmo que o cozinheiro não seja grande coisa.
blza de text
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