domingo, 17 de julho de 2011

Reminiscências Parte I - Um dia na sua vida

Muitos já disseram que o passado é para ser esquecido; que o presente é que importa e que é preciso viver como se não houvesse amanhã, porque pensar no futuro é irrelevante, pois este pode nem existir. Concordo apenas com as duas últimas premissas, mas discordo em relação à primeira.

Pois o que sou senão as lembranças e impressões que trago do passado? Sejam lembranças boas ou más, são elas que me fazem optar, na maturidade, por uma alternativa entre as várias que se apresentam e fazer minhas escolhas levando em conta o que de bom eu vivi. São as impressões que ficaram gravadas no meu inconsciente quando ainda era criança que me fazem reagir de maneira saudável ou não na maturidade. E maturidade é isso, é optar sempre por reagir de maneira saudável, não importa que as mesmas impressões de insegurança e de desamparo da juventude venham à tona.

O que sou senão o que gostei de comer quando criança, o que gostei de beber, de assistir, de brincar, de sonhar? O que sou senão o que me fez rir, o que me fez chorar, temer, respeitar? No meu kit identitário não consta apenas um número, uma cor, uma data, uma profissão: também consta tudo o que gostei e o que não gostei quando criança. Não há lacunas nem espaços em branco, nada que eu queira esquecer, nem mesmo as reações ruins que tive, pois é a percepção de tê-las tido que me fazem, hoje, fazer escolhas de modo a substituí-las por reações boas.

E a lembrança mais doce que tenho é a de um menino de 14 anos. Eu tinha 12 anos na época e não parecia em nada com as pré-adolescentes de agora: era magricela, usava óculos, tinha cabelos escorridos e parecia um ratinho de biblioteca de tão séria, compenetrada e avessa a demonstrações de afeto.

Ele era o garoto mais bonito da escola: loiro, olhos verdes, alto para a idade e dentes perfeitos, quando a maioria dos meninos usava aparelho dentário. Eu ficava de longe, só admirando aquela promessa de Apolo, com medo de me aproximar. A beleza daquele garoto fazia com que eu me considerasse mais ainda um ratinho. Mas as garotas mais bonitas e populares tudo faziam para chamar a atenção dele. E nem sabiam que o que as motivava era a famosa rivalidade existente entre as mulheres, não importa a idade.

E foi numa fatídica reunião dançante (reuniões dançantes eram feitas à tarde) que tivemos o primeiro contato. Lá estávamos todas, esperando para ver com quem o Apolo dançaria. Colocaram uma música na vitrola (ainda era vitrola) e Michael Jackson começou a cantar “One day in your life”, o hit do momento.  Fiquei num canto, sabendo que não teria chances. Nem queria olhar.

Então, de repente, escutei uma voz ao meu lado perguntar se eu queria dançar. Quando olhei, levei um susto: era ele! Olhei para a esquerda, para a Denise; depois, olhei para a direita, para a Andreia; olhei para as demais meninas e todas estavam olhando para mim. Então, olhei para ele interrogativamente. Ele entendeu meu olhar, disse que sim.

Até chegarmos ao meio da sala onde havia uma pista de dança improvisada, fui deixando um rastro de destruição pelo caminho. De tão estupidificada, eu não conseguia caminhar sem tropeçar ou derrubar alguma coisa.  Então dançamos, não uma, mas todas as músicas. E foi a primeira vez que eu senti perfume no sexo oposto, aquele aroma que parece se desprender da pele da pessoa que mais gostamos de tocar, de sentir, de cheirar, mesmo que não haja perfume algum. Aquele garoto tinha cheiro de campo repleto de trigo.

E meu primeiro namoro começou desse jeito. Após esse dia, ficávamos juntos no recreio e, depois das aulas, íamos para a praça sentar em algum banco para “namorar”. E jamais passamos disso. Ele era tão doce, tão gentil, tão amigo e companheiro, que foi ele quem me explicou todas as transformações que estavam ocorrendo no meu corpo. Não foi minha mãe quem me falou a respeito da menstruação: foi ele, e no dia em que notei as manchas de sangue pela primeira vez na minha roupa, à saída do colégio, e pus-me a gritar, pensando que tinha me machucado.  

Perdemo-nos pelo caminho após o término do ano letivo. A família dele mudou-se e eu fui matriculada no colégio Rosário. Para mim, havia começado uma nova fase. E foi neste momento que aprendi o que era sentir saudades.

Mas eu nunca me esqueci dele. Foi o primeiro abraço de conforto, a primeira sensação de segurança após um momento de inquietude e a primeira vez – talvez a única - que venci um batalhão de rivais sem precisar lutar, por ser apenas quem eu era, nem mais e nem menos. Volta e meia percebo-me pensando nele e revivendo aquele amor tão pueril de adolescente. Como são boas essas lembranças. Talvez elas sejam as culpadas por eu ter me tornado tão exigente e seletiva a ponto de saber separar, hoje, o joio do trigo.

E a música que dançamos naquele dia é esta, que não me canso de escutar: One day in your life. Nesta madrugada de domingo, meus pensamentos estão nele. Talvez o alcancem.


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