domingo, 17 de abril de 2011

Cópia Fiel

Alguém disse que a obra de um autor não pertence mais a ele no momento em que é interpretada, lida, tocada e sentida por outras pessoas. É como se ele lançasse ao mundo algo incompleto e deixasse que cada um desse o acabamento de acordo com sua ótica. Veja o exemplo da obra La Gioconda, a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci:

Tela original

São muitas as interpretações a respeito do seu enigmático sorriso. Alguém disse que ela era desdentada; outro, que possuía uma doença degenerativa nos ossos da face que a impedia de mover os músculos. Um médico italiano, Tito Franco, afirmou que ela possuía “sintomas” de xantelasma (pequenos tumores benignos ou depósitos de gordura) situados ao redor das pálpebras e nas mãos. Entretanto, para os mais românticos, seu sorriso traduz toda a resplandescência ofuscante dela, é um mal hipnótico ou, como disse o ensaísta inglês Walter Pater, “trata-se da própria eternidade, imersa em mares profundos, conservando em torno de si a luz de seus crepúsculos”.

Veja como seria uma cópia nem tão fiel da obra:











Deixando Mona Lisa e suas cópias de lado, fico imaginando aquelas mulheres que fazem várias cirurgias plásticas para se parecerem com atrizes ou modelos famosas. Até ficam parecidas externamente, mas suas naturezas instintivas ou idiossincráticas permanecem imutáveis.  Por mais que tentem ter a mesma boca da Angelina Jolie, por exemplo, jamais terão a mesma expressão no olhar que ela possui ao sorrir ou reagirão como ela em determinadas situações. Aliás, muitas vezes o resultado é devastador, como o ocorrido com a Donatella Versace. Antes ela tivesse ficado com a boca original...


Toda essa tergiversação é para tentar explicar – até mesmo para mim – o filme Cópia Fiel, do diretor iraniano Abbas Kiarostami, tendo no elenco os atores Juliette Binoche e William Shimell, que nem é um ator de verdade, mas um barítono.

Até a metade do filme a situação do casal foi um tanto ambígua. Não sabia mais se eles estavam representando um papel - para que pudessem justificar o teor do livro escrito pelo personagem de Shimell - ou se estavam tentando reviver uma realidade que não existia mais. Não ficou explícito, no filme, se eles haviam sido casados ou não. Afinal, eles estavam representando ou contando uma história deles próprios? Acho que o objetivo do diretor era esse mesmo, ou seja, confundir o espectador, dar a entender que o próprio filme é uma cópia da realidade enfrentada por muitos casais que, no afã de acreditarem que nada mudou, que tudo pode voltar a ser como era antes, criam uma farsa para poderem suportar – ou por não desejarem enxergar – a realidade. 

Uma cena que me chamou a atenção foi quando eles estavam discutindo em um restaurante. Elle disse ao personagem de Shimell mais ou menos assim: “Por que você não pode simplesmente estar aqui, ver o quanto fiquei bonita para você?”.

Acho que muitas pessoas tiveram uma sensação de déjà vu ao assistir à cena. Afinal, quantos jantares, almoços ou eventos que tinham tudo para serem prazerosos não terminaram em brigas e amuos porque uma das partes envolvidas não teve o bom senso de escolher outra ocasião para expressar pensamentos impróprios?
Como no trecho do livro “Fora de Mim”, da Martha Medeiros:”...Naquela noite que poderia ter sido amena, me vi desistindo de um jantar e de nós dois em menos de dez minutos, a decisão mais rápida da minha vida...”.

Outro fato marcante diz respeito aos diálogos alternados entre italiano, francês e inglês. Fiquei pensando por que o diretor deu tanta ênfase a esse detalhe. Todos nós sabemos – ou aprendemos depois de muitas idas e vindas - que o que dá sentido de permanência a qualquer relacionamento é uma boa comunicação. Inexistindo, é como se as partes falassem línguas diferentes ou fossem de planetas diferentes. No caso dos personagens, eles falavam a “mesma língua”, mas faltava-lhes a condição precípua para que a convivência se tornasse possível: sintonia emocional. Mesmo atraídos intelectualmente, distanciavam-se emocionalmente. Um desejando e o outro repelindo.

Por mais que o modelo de um casal perfeito seja copiado (o casal que eles encontram de passagem) ou imperfeito (como no diálogo entre Elle e a dona do café, em que ela se dispõe a contar todos os defeitos do seu suposto marido), nada, mas nada mesmo, sobrevive se não há autenticidade e apaixonamento.

Eu gostei do filme. Gostei imensamente. Fez-me pensar em pessoas estranhas que se encontram em alguma esquina dessa vida e que podem ou não querer se conhecer. Se podem, não querem, e se querem, não podem. Nem os longos diálogos foram de forma alguma enfadonhos para mim. Foram necessários para a dinâmica do filme, voltada apenas às discussões de um casal acerca de seus desejos mais profundos. Não é um filme para emocionar, levar o espectador às lágrimas, mas para fazer pensar se vale a pena viver uma farsa e, ao mesmo tempo, sonhar com o que pode vir a ser.

Em minha opinião, não vale a pena, pois tolo é aquele que tenta tirar água de um poço que já secou por acreditar que ainda existe água subterrânea. É melhor buscar outras vertentes a ficar com as mãos sangrando de tanto escavar.

Queridos, esta obra intitulada Cópia Fiel deve ser assistida, não por tratar-se de algo de que possam tirar algum ensinamento, mas por tratar-se de um problema tão corriqueiro nos dias atuais e que poucos percebem: toda cultura vive por meio da invenção e da propagação dos significados de vida.

Vive-se a própria vida como uma história ainda a ser contada, mas a forma como deve ser tecida a história a que se espera contar decide a técnica pela qual o fio da vida é tecido.

Quem costuma ler o magnífico pensador Zygmunt Bauman saberá que o último parágrafo desta postagem foi transcrito de um excerto de sua obra “A Sociedade Individualizada”. Uma cópia fiel, enfim. Eu não podia ser diferente da maioria.

Obs.: A última notícia que fiquei sabendo é que Christian Loubotin processará a grife brasileira Carmen Steffens. Motivo: a referida grife copiou os fatídicos solados vermelhos dos sapatos de Loubotin. É...copiar também gera processos.


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